Como se não lhes bastasse o controlo hegemónico das salas de aula, programas como o Fórum TSF, Antena Aberta ou Opinião Pública permitem ver como a brigada fundamentalista toma de assalto o pluralismo.
Por Gabriel Mithá Ribeiro (*)
O ser humano é indissociável da condição pensante quer enquanto indivíduo, quer enquanto colectivo. Significa que as sociedades apenas existem enquanto tal se produzirem um pensamento colectivo (ou social) autónomo não apenas em relação ao pensamento individual (ou intelectual), mas também em relação ao pensamento de outras sociedades.
Serge Moscovici – psicólogo social e teórico referência – explicou como se produz, mantém e continuamente se reinventa o pensamento colectivo que designou por representações sociais. Destaco dois detalhes. Primeiro, Moscovici identificou nos discursos de senso comum (“da rua”) a matéria-prima por excelência na produção e captação do pensamento enquanto fenómeno social. Segundo, considerou que a renovação de conhecimentos implica proteger as novas ideias ou as ideias diferentes na sua fase inicial quando intuímos possuírem algum potencial. Isso porque as suas reais consequências apenas poderão ser efectivamente aferidas quando passarem a orientar as práticas sociais, aquilo que os indivíduos fazem.
Nesse sentido, evocar a nossa atitude face aos recém-nascidos é a forma útil de justificar o dever moral das sociedades em protegerem as novas ideias pelo seu valor em si mesmas, mas não menos enquanto condição de justiça e pressuposto de prosperidade. Sabemos ainda que os rumos do pensamento colectivo dependem das características das ideologias que dominam o espaço público. São as últimas que favorecem a revitalização contínua das sociedades ou o seu contrário, a sua esterilização, estagnação ou atraso.
Chego a uma evidência. Os núcleos fundamentais de produção e regulação do pensamento colectivo das sociedades ocidentais – ensino, comunicação social, música popular, cinema e demais expressões intelectuais ou artísticas com impacto no senso comum – vivem submetidos ao poder hegemónico do pensamento das esquerdas, expressão aqui sinónima de marxismo cultural ou de pensamento “progressista”.
Para a compreensão do texto, devo insistir na relevância de não se confundirem as práticas (o que se faz) com o pensamento (o que se diz ou escreve). Isso porque a perseguição física no espaço público (“nas ruas”) teve no passado uma relação paradoxal, até contraditória, com a dignidade da produção de pensamento pelos perseguidos. O processo favoreceu, à época, a renovação intelectual.
Todavia, o contexto actual evidencia a estrangulação desse modelo. Tornou-se bem mais habitual as tentativas de renovação serem humilhadas no espaço público precisamente enquanto manifestações de pensamento. Ou seja, a esterilização inquisitorial do pensamento está hoje bastante mais refinada e, por isso, muito mais eficaz.
Para chegar onde hoje chegou, e com justa legitimidade na origem por não se poder aferir por antecipação as consequências concretas da tradução de novas ideias em práticas sociais, o marxismo cultural beneficiou de berços relativamente tranquilos ou, no mínimo, dignos. Com o tempo foi-lhe ainda permitido viver uma adolescência em que os mais variados excessos foram tolerados. Nas sociedades ocidentais, a tradução desse pensamento em práticas foi bastante sintomática nas ruas de Paris, Londres ou Nova Iorque, para citar casos emblemáticos gerados nos anos sessenta do século XX.
Entretanto, tais práticas atingiram a idade adulta ou entraram mesmo na terceira idade para poderem ser aferidas sem grande margem de erro. O seu amadurecimento revelou os piores vícios e abusos que deixaram muitas mãos manchadas de sangue. Porém, os que se identificam com a utopia persistem em exigir aos demais que os tratem, nos dias que correm, como recém-nascidos ou sujeitos estagnados numa fase da meninice mimada.
Pior. Esse pensamento e as práticas que o materializaram persistem autoconvencidos de serem os únicos filhos legítimos herdeiros de uma linhagem que constantemente actualiza no tempo tradições medievais. Não hesitam no infanticídio de ideias que pressentem que um dia poderão ameaçar o seu controlo da vida colectiva. O tempo está a comprovar que, afinal, os comunistas – também socialistas e próximos – comem mesmo criancinhas ao pequeno-almoço. A inferência resulta da constatação de viveram numa sofreguidão de Herodes que impede a conquista de um mínimo de dignidade no espaço público de um pensamento que não o seu.
Quase não é possível a um pensador, académico, jornalista, comentador, político, médico, autor, actor, músico, cineasta ou o quem quer que seja romper, apenas por si, com o controlo impiedoso do pensamento. Nem um papa que não caia no goto esquerdista, empresas e, muito menos, o mundo académico possuem tal poder.
Como se não bastasse o controlo hegemónico do interior das salas de aula e dos alinhamentos noticiosos, programas como o “Fórum TSF”, “Antena Aberta” ou “Opinião Pública” permitem constatar como uma omnipresente brigada fundamentalista toma de assalto, do primeiro ao último minuto, espaços e mecanismos que, desse modo, não conseguem promover a efectiva liberdade e pluralidade que sustentem a renovação continuada do pensamento social, condição do progresso social, económico, cultural, civilizacional.
No Observador, um caso-tipo, a tentação infanticida não desarma nas caixas de comentário. A brigada possui um “célula” composta por camaradas como José maria, Joaquim Sousa Alves, Soldado Milhões, chegaparali chegaparali, Jesus Manuel, Luis Ilheu, Maria Narciso, Amon Rá, Susana Oliveira, José João Justino, Cipião Numantino da Boina, O que Escrevemos. Comentar em primeiro e/ou em último lugar, ou comentar muito e a despropósito, porque sim, é a missão. A brigada pouco ou nada se preocupa em contra-argumentar, antes em esterilizar um espaço público onde poderá emergir a renovação do pensamento colectivo. A tolerância a tais missionários da terra queimada está a ter e terá a prazo custos pesadíssimos para todos nós.
Os membros da lista citada são casos-tipo de psicopatas do pensamento social. Nem sequer estou a ser irónico e muito menos abusivo. Estou apenas a ser academicamente rigoroso.
Bastiões seculares da liberdade de pensamento como nenhuma outra civilização, a Europa Ocidental e os Estados Unidos da América dão mostras de capitular face ao fundamentalismo ideológico. Se não confundirmos o essencial com o acessório verificamos que o aproveitamento externo pelo radicalismo islâmico mais não é do que um mera consequência acidental de fenómenos de intolerância profundamente instalados no interior das sociedades ocidentais.
Vivemos dias em que alguns se permitem, perante excessos de passividade ou cinismo dos demais, atentar contra um direito humano básico do mundo civilizado: a dignidade do pensamento colectivo que é também a dignidade do exercício da liberdade e da sua promoção no espaço público. O que aí hoje acontece é tão grave quanto a violência doméstica na intimidade familiar.
Entre esses dois males distintos que, em comum, atentam contra o mais íntimo da condição humana somos exímios em identificar formigas, porém incapazes de prestar atenção aos elefantes ao lado. Falta apenas saber por onde andam os burros, a terceira espécie animal do enredo.
(*) Professor, investigador e ensaísta, doutorado em Estudos Africanos
Notas. Artigo de opinião publicado no jornal português Observador em 19 de Julho de 2017. Foi nesse ano que João Lourenço assumiu, sem ser eleito nominalmente, a Presidência de Angola. Mais do que analisar o mensageiro, importa ler e entender a mensagem. No Folha 8, os comentários passam pelo crivo de um moderador, sendo muitos apagados e não raras vezes os seus autores são banidos.